O destino nos coloca em caminhos nunca antes imaginados. E claro, cada decisão tomada, por mais que não seja planejada nos leva a resultados diferentes. E o “tal” do destino trouxe ao turfe um dos maiores profissionais do Paraná e do Brasil.

Vencedor de diversas provas clássicas pelo Brasil, Tríplice Coroado por duas vezes no Tarumã, uma em São Paulo e maior vencedor de GPs Paraná ao lado de Pedro Nickel Filho, nosso personagem surgiu como treinador após uma enfermidade na família. Hoje, 37 anos depois conta um pouco de sua brilhante história no “Personalidades do Turfe”.

Com vocês, Marcio Ferreira Gusso.

Mas antes de mais nada precisamos falar desta família que chegou ao Brasil e é tão ligada aos cavalos. Os “Gusso” chegaram no país em 1888, e a ligação com o turfe sempre foi grande. O avô de Marcio, Ernesto Gusso, treinou animais em cancha reta e no trote. Além disso era ferreiro, dom que passou a seu filho Rubens, pai de Márcio e que também foi treinador.

O seu tio avô, irmão de seu avô era Pedro Gusso, que treinou animais em Curitiba e Rio de Janeiro. O filho de Pedro Gusso foi o jóquei Pedro Gusso Filho, o “garoto de ouro” que brilhou na Gávea e venceu a primeira edição do GP Paraná, com o argentino Con Ochos. Ainda na família tivemos os treinadores Mário Gusso, Altair Gusso. Além claro de Elídio Pierre Gusso, pai do Carlos Pereira Gusso e do Elídio Pereira Gusso, todos treinadores. Enfim, uma família toda envolvida com o turfe.

No entanto, talvez o caminho de Marcio não fosse este. Ele acompanhava o pai Rubens no Jockey, seu irmão Rubens já estudava medicina veterinária e Marcio estudava para passar no vestibular. Porém, um problema cardíaco de seu pai fez com que muito jovem Marcio fosse “obrigado” a assumir o treinamento dos cavalos. O tio Mário, que já havia sido treinador também foi um importante mentor.

“Eu ainda era jovem quando meu pai ficou doente, teve um infarto”, conta Marcio. “Eu era muito novo e acabei assumindo o posto junto com meu tio, Mário Gusso, que tinha sido treinador. Ele veio nos ajudar, fazia a raia e eu acompanhava ele. Isso foi no início de 1982. No meio de 1982 eu tirei a matricula de treinador e estamos aí até hoje.”

Mas não foi só este percalço que colocou Marcio no caminho das vitórias. Por duas vezes ele teve que decidir se queria realmente continuar na profissão tradicional da família ou seguir outros rumos. A primeira foi quando passou em Administração na Universidade Federal do Paraná, tendo que conciliar os estudos com o árduo trabalho no turfe. A outra, poderia ter dado uma vida completamente diferente a ele.

“Exatamente nesta época eu havia feito um concurso para a Embratel”, lembra-de Marcio. “E em um determinado dia me ligaram e falaram: ‘Parabéns, você passou no concurso e começa amanhã, precisa trazer os documentos e já começa a trabalhar’. Eu não entendi, indaguei a respeito e me foi explicado que eu estava contratado pela Embratel. Na hora eu expliquei que não queria, que estava bem fazendo o que estava fazendo e não iria aceitar o emprego. O rapaz da empresa ficou surpreso, pois era um concurso muito concorrido e ninguém desistia de um emprego concursado como este. Poderia ser completamente diferente minha vida se tivesse dito sim, mas acredito que tomei a decisão acertada.”

Depois de matriculado como treinador a primeira vitória veio rápido. No dia 31 de julho de 1982 Marcio venceu com Corçado, de criação de Augusto de Souza Pereira e de propriedade do Stud Camarote, de Alvaro Cecílio Dib. Depois disso vieram alguns ótimos cavalos, no entanto, um animal em especial marcou a carreira de Marcio Ferreira Gusso.

“Existe um divisor de águas na minha carreira, que foi o Job di Caroline. Até eu treiná-lo eu sempre batalhei, as dificuldades aqui no Tarumã eram muito grandes, a competitividade em São Paulo era imensa, com excelentes profissionais. O turfe tinha um nível muito alto tanto aqui quanto lá”, continua Marcio. “E o Job di Caroline foi um cavalo de exceção. Ele era de uma superioridade surpreendente. No Tarumã ele correu cinco provas aos 2 anos e nunca teve dificuldades, brincou de correr. Depois venceu grupo 1 no Rio de Janeiro, foi bem na Tríplice Coroa de São Paulo e marcou muito minha carreira. Enfim, um cavalo fantástico. Dali em diante mudaram as coisas para mim, comecei a receber animais de mais qualidade e começaram a surgir as grandes vitórias.”

Dentre tantas vitórias de Job di Caroline, uma história engraçada e que mostra um pouco da rivalidade sadia que se vê até hoje no Tarumã.

“Ele venceu as três primeiras com grande facilidade”, conta o treinador. “Então na quarta corrida eu pedi para o Edgar Araujo poupá-lo, porque tinha deixado ração no cocho um dia e tal. Então ele largou, tirou na frente e com grande diferença nos 200 finais o Araujo começou a parar ele. O Job di Caroline passa de galopinho curto no disco. E os adversários chegaram com  muita ação no final, porque ele estava parando. Ele chegou com apenas dois corpos de diferença para o segundo. Dali um mês tinha o GP ABCCC (Listed) e era mais distante uns 100 metros. O treinador do animal que fez segundo começou a falar bastante durante a semana da prova. Que o animal dele ia vencer, que ia pegar no final e etc. Falou bastante sobre a futura derrota do Job di Caroline… Choveu muito no dia, a pista estava uma lama e eu falei para o jóquei: ‘Olha, hoje não tem jeito, o cavalo está bem então hoje é sem brincadeira. Entrando a reta faça correr’. E foi o que aconteceu, ele ganhou com uns 20 corpos de vantagem quase batendo o recorde, mesmo em uma pista pavorosa. Ao fim da prova eu cheguei no treinador do adversário e perguntei: ‘E aí?’. E ele me respondeu: ‘É, não tem jeito mesmo de ganhar desse seu cavalo'”.

Com este portfólio Marcio começou a alçar voos maiores. Depois do alazão do Haras Curitibano ele começou a receber mais oportunidades. Marcio frisa que a continuidade de animais que demonstravam qualidade aqui no Tarumã foi importante para seu futuro. E claro, uma das maiores alegrias dele veio algum tempo depois, quando um potro do Haras Valente chegou em sua cocheira para ser treinado.

A história deste potro é interessante. Márcio sugere que “histórias contam” que este animal era para ser uma defesa do criador, que acabou se tornando uma venda. O potro em questão era filho de Crafty CT em mãe Know Heights. Com este cavalo ele conseguiu um feito que pouquíssimos tiveram a honra de alcançar. Se tornar Tríplice Coroado Paulista.

Fixador, treinado por Marcio vence a Tríplice Coroa Paulista.

“Um ano antes eu havia assumido a cocheira do Haras Valente e um potro deles foi comprado no leilão pelo Dr. Newton Birskis”, conta Marcio. “O Fixador chegou em outubro e estreou em março direto em São Paulo. Eu ia estrear aqui, mas acabou não formando páreo e ele foi inscrito lá. A prova mudou da grama para a areia, choveu muito e ele levou muita areia na cara. Correu longe, entrou a reta último longe e mesmo assim embalou e venceu nos últimos metros. Em seguida escrevemos ele em um clássico e, novamente com transferência de pista, ele correu mais atrás. Teve um percurso ruim e chegou em quinto voando no final.”

Na corrida seguinte, a Prova Especial Heliaco, novamente uma boa atuação. Desta vez deu grama e Fixador teve grandes prejuízos na reta, ficando encaixotado o páreo inteiro. Chegou terceiro demonstrando muita ação, sendo inscrito no GP Farwell (G1), grande criterium de potros de Cidade Jardim.

“Fomos correr o GP Farwell, principal prova de potros de 2 anos. O Queiroz (Antonio) estava com a perna quebrada e decidimos dar a montaria para o A.C.Silva”, relembra Marcio. “Parecia reprise do páreo anterior, o qual ele ficou encaixotado a reta inteira. Mas nos metros finais o Jaspion Silent abriu um pouquinho e ele conseguiu a passagem, matando os adversários no disco por diferença de cabeça. Ali já foi um teste para o coração.”

Das provas da Tríplice Coroa, Marcio acha o GP Ipiranga a mais emocionante. A arrancada final de Fixador foi algo realmente impressionante. Mas claro, vencer o Derby e ainda se tornar tríplice coroado foi algo marcante. Para Marcio, Fixador era um cavalo de extrema inteligência, que sabia o que tinha que fazer e onde precisava correr. Assim, o cavalo venceu as três provas da Coroa e colocou seu nome – e o de Marcio Ferreira Gusso – na história.

“O Ipiranga foi uma corrida lindíssima, não tem o que falar”, conta Marcio. “Para mim foi a mais emocionante das provas. Ele estava muito longe, faltavam 200 metros e ele deu uma embalada sem levar nenhuma chicotada, o cavalo sabia o que estava fazendo. Na segunda prova ele ganhou muito fácil e no Derby, por peripécias de percurso ele correu mais perto, abriu uma passagem boa por dentro e nos 450 finais tomou a ponta.”

Quem lembra desta chegada com certeza se emocionou e ainda se emociona assistindo o replay. Lutando pela Tríplice Coroa, Fixador chegou a livrar boa diferença para os demais. No entanto, o craque Jaspion Silent começou grande atropelada chegando até a dominar o ponteiro. Em direção inspirada de Antonio Queiroz e com um coração enorme, Fixador voltou por dentro para vencer o Derby Paulista de forma espetacular.

Em 2017 Marcio recebeu da Câmara Municipal de Curitiba os “Votos de Congratulações e Aplausos” por sua quarta vitória no GP Paraná.

“Ele correu contra as características dele e ainda teve que suportar um Jaspion Silent – que depois venceu o GP São Paulo – voando por fora”, relembra o treinador. “Mas existem cavalos e cavalos. O Fixador sabia o que fazia. Ele era muito inteligente, sabia que tinha que correr para ganhar. Ele sabia que tinha que correr e passar o disco na frente, sabia onde ficava o disco. Se fosse qualquer cavalo normal teria perdido para o Jaspion Silent, mas o Fixador olha para o lado, você vê no replay ele olhando, percebe o adversário vindo e dá o sangue para vencer. Ele fraturou o metatarsiano no Derby e mesmo assim, com o osso fraturado ele reage e não deixa o adversário passar. Esse foi o único páreo que o Fixador correu e estava esgotado. Após a prova ele estava muito cansado. O coração e a inteligência que ele tinha me marcaram. Com certeza foi o meu maior momento no turfe.”

Marcio venceu por quatro vezes o GP Paraná. A primeira com Golden News, de propriedade do Haras Primavera. Depois venceu com Inamoratto, de Rubens Grahl, Mr. Pleasentfar do Haras Garcêz Castellano e No Ar, do Stud Blue Velvet (Nestor Baptista). Márcio conta que cada vitória tem uma emoção especial, não dando para citar qual delas foi o mais importante. Com uma ótima memória, o treinador consegue contar detalhes de cada vitória, que passam muitas vezes despercebidos pelos espectadores.

“Cada vitória tem uma história diferente que marca”, conta Marcio. “O Golden News ainda era potro, foi com 51 quilos contra os dois favoritos, Ask Me Why e Hollatochee que foram com 61 quilos. Ele vinha de segundo para o Ask Me Why em 2.200 metros perdendo para recorde. Tomou a ponta e galopou na frete, floreando. Na curva o Antonio Bolino e o Edgard Araujo perceberam que o ‘problema’ estava lá na frente e aceleraram para buscar o Golden News. Eu estava de binóculo acompanhando, quando vi que o Antonio Cassante – que montava o Golden News – só deu um pouquinho de rédea e o cavalo fugiu dois corpos. Ali eu não consegui mais assistir a prova de binóculo, pois comecei a tremer. Larguei o binóculo e comecei a acompanhar. Ele ganhou disparado. Uma emoção muito grande. Na verdade todos foram uma emoção muito grande.”

Se na primeira conquista do GP Paraná deu “tremedeira” em Marcio, no último, com No Ar foi uma surpresa. Como a parelha da Coudelaria Baptista vinha de resultados melhores, com Orario Pubblico vencendo o Clássico Derby Paranaense (Listed) e Olhar Mágico a preparatória, para o treinador No Ar era o menos cotado dos três.

“O No Ar foi uma surpresa fantástica”, comenta Marcio. “Eu gostava da parelha. Achava que ela tinha mais chance. O Orario Pubblico vinha de ganhar o Derby para cima do Olhar Mágico e depois o outro – Olhar Mágico – ganhou a preparatória muito fácil. Claro que cada corrida é diferente, mas se você olhar o prejuízo que o Orario Pubblico sofreu na largada com a queda do punga, talvez ele tivesse ganho. Porque ele sobra para último longe e chega em quinto voando. Sem isso, talvez tivesse ganho o Orario Pubblico.”

Marcio está animado com a geração que tem em mãos. Potros com boa filiação e porte dividem suas cocheiras com ótimos animais que cumprem campanha. Mas não é só isso que ele valoriza nesta caminhada. Depois de 37 anos como treinador, mais alguns acompanhando seu pai no manejo diário, para ele o turfe trás muito mais que apenas bons cavalos e vitórias.

“A melhor coisa do turfe são os amigos”, sentencia Marcio. “Vou te dar um exemplo. Não dá para citar todos, pois são muitos e podemos esquecer de alguém. Eraldo Palmerini tem cavalos conosco desde 1978, quando ele ainda eram bem jovem. Ele tinha cavalos com meu pai, tem cavalos comigo desde que eu comecei em 1982 até hoje e terá cavalos por muito tempo ainda. A melhor coisa que tem no turfe é isso, você ter uma pessoa ao seu lado por 40 anos. Isso é trabalho, confiança, amizade, enfim, uma série de coisas que o turfe proporciona. É claro que ganhar é preciso e bom, mas o mais importante do turfe é conhecer pessoas e fazer amigos.”

Poderíamos escrever mais umas doze matérias com Marcio, afinal, ele tem uma memória espetacular e lembra de cada carreira que ganhou. Não foram poucas, na verdade são mais de 1.100 vitórias. De páreos normais, como o primeiro com Corçado em 1982, até vitórias espetaculares em prova de Grupo 1, como as contadas aqui. Um grande profissional admirado por todos e que com certeza está entre os grandes da história do turfe paranaense e brasileiro. Mais uma personalidade singular deste esporte que amamos tanto.

*Fotos: Luiz Melão, Leopoldo Scremin e arquivo Câmara Municipal de Curitiba.