Quando falamos em criar cavalos em São José dos Pinhais, sempre nos vêm a cabeça diversos centros criatórios de renome. O Haras São José da Serra do craque Sandpit, Haras Santarém de Glória de Campeão, a sucursal do Haras Santa Maria de Araras e por aí vai. Mas todos estes estão localizados na grande São José, a maioria bem retirados e beirando as Rodovias que levam à Serra do Mar.

Mas tem um haras em São José dos Pinhais que foge do comum, chegando a ser surreal. Dividindo o espaço com grandes indústrias, lojas e de frente para a maior avenida da cidade, ele cria com maestria e já venceu diversas provas no Brasil, Uruguai e na Península Arábica. Em especial um detalhe que chama ainda mais a atenção: este haras fica localizado no Centro de São José dos Pinhais.

Contrastando com as reprodutoras no piquete, o ônibus passando na Avenida Rui Barbosa (foto: Leopoldo Scremin)

Você de dentro de um piquete vê os ônibus que carregam a população para os bairros passando na rua. Os tanques de peixes, grande hobby de seu proprietário, são tão bem feitos e cuidados que parecem piscinas. E o mais incrível de tudo: nesta propriedade foram criados diversos craques vencedores de provas graduadas, inclusive o vencedor do Grande Prêmio Paraná (G1) de 2004.

Um haras no meio da cidade, que já venceu mais de 500 corridas e tem um mercado de venda gigantesco. Tudo isso só tem uma explicação: o amor que o criador tem pelos animais e, principalmente, pelas corridas de cavalos.

Nossa “Personalidade do Turfe” desta semana é o proprietário deste haras, que aos 91 anos esbanja saúde ao mostrar com orgulho todos os piquetes e os cavalos alojados lá. Hoje teremos o prazer de contar a história deste patrimônio do turfe brasileiro, o ilustre Clemente Moletta.

A história de Clemente com os cavalos começou ainda na década de 50, quando seu pai tinha uma pista de desafios para cavalos em cancha reta, localizada onde hoje é o Balaroti de São José do Pinhais. Ali o jovem Clemente se aventurava montando os cavalos do seu pai, Antonio Moletta.

Porém o jovem Clemente ficava cada dia mais pesado, tendo que buscar outro jóquei para montar seus cavalos nos desafios. O escolhido foi ninguém menos que Eduardo Gosik. Clemente continuava tratando os animais, aprendendo cada dia mais. Sua primeira experiência no Jockey foi com égua Lembrada, que foi levada para ser treinada por Rubens Gusso. Já na estreia Lembrada venceu, isso ainda no Prado Velho.

Lembrada tem espaço especial no escritório de Clemente Moletta.

O terreno que hoje funciona o Haras Clemente Moletta começou como uma leiteria. Na época ninguém imaginava que aquela região cresceria tão rápido e se tornaria a metrópole que é hoje. Em 1959, Clemente decidiu começar a criar cavalos. Na época teve algumas dificuldades e claro, como em tudo na vida, demorou certo tempo até começar a acertar continuamente.

“A gente parou com a leiteria e começou a criar cavalos”, conta Clemente Moletta. “Mas no começo tivemos dificuldades. No início eram uma ou duas éguas. Daí fomos melhorando gradativamente, até que compramos um  garanhão com muita raça, filho do Formasterus, o Pinga Fogo.”

O primeiro produto do novo reprodutor foi a égua Colmina. Depois vieram Ditafogo, Decaricia, Dionete, Florzinha, Galingre e mais outros até chegar em Montila. No total o reprodutor teve 14 produtos registrados, a grande maioria de criação do Haras Moletta. No entanto, Clemente não tem boas lembranças de seu primeiro reprodutor.

Os tanques de peixes impressionam pela beleza e capricho.

“O Pinga Fogo me atrasou a criação em 10 anos”, lembra Clemente. “Ele tinha oito irmãos aprovados na reprodução e ele não deu nada. Até o Doutor Alô (Ticoulat Guimarães) queria me comprar o cavalo e eu não vendi, porque ele tinha oito irmãos aprovados. Eu insisti com o Pinga Fogo e perdi dez anos. Aí passei a comprar coberturas e melhorou bastante.”

Nesta época, Clemente lembra que ainda não tinha a excelência de hoje em dia. Com reprodutoras com pedigrees não tão bons, os animais não tinham os mesmos resultados clássicos. Mas como ele mesmo deixa claro, “sempre ganhando corridas”. Uma prova disso são os cômodos de sua residência no haras, quase todos decorados com fotos de vitórias de seus animais. Em vários espaços “faltam paredes” para tantas fotografias de animais no winner circle.

Um dos diversos quadros expostos. Neste a craque Dá-lhe Senadora vencendo a não menos craque Holy Legal.

Clemente continuou investindo na criação e conquistando vitórias. Não tem como uma pessoa não se orgulhar de ver o resultado de tanto trabalho duro. O interessante desta história é que quando Clemente começou a criar na localidade que se encontra até hoje, alguns amigos diziam que ali não era um local adequado. Afinal, ali é o Centro da sexta maior cidade do Estado, segunda em arrecadação.

Outra coisa que impressiona é a qualidade do pasto, que cresce em grande quantidade em todos os piquetes. Clemente comenta que é tanto feno que ele já ofereceu para o grupamento montado da Polícia Militar, de graça. Ele também contou que utiliza um método diferente de alimentação para que os animais cheguem fortes ao hipódromo.

“Olha, um amigo me disse uma vez que eu era louco de criar aqui, mas na época passava aqui na frente um carro por mês. Só passava charrete e carroça aqui na frente”, comenta o criador.

Na foto a espetacular Spade, com a Avenida ao fundo.

“O que se faz aqui poucos haras fazem. Aqui a gente trata os animais três vezes por dia. Os treinadores reclamam que a gente manda os potros para a cocheira com mais de quinhentos quilos. É um pouco de excesso, dá mais trabalho, mas é melhor mandar um potro com 500 quilos para perder peso que um de 380, 400 quilos para ganhar peso lá.”

“Se você sair aqui e olhar em cada piquete, vai ver alguns com pasto acima do joelho. Tem pasto sobrando em todos os piquetes. Tem gente que vem aqui e se admira. Quem quiser vir aqui e cortar um caminhão de corte cross, pode vir aqui que está sobrando. O corte cross é o feno que vende enfardado igual alfafa. Nos meus piquetes tem corte cross para cortar, enfardar e vender se quiser. Isso sobrando. É um pasto diferente. Outra coisa, lá fora tem alfafa sobrando nas grades, o potro come o quanto quiser. Então eu acho que isso ajuda um pouco no resultado final.”

Em todos os piquetes impressiona a quantidade de pasto.

E andando pelo Haras Clemente Moletta isso fica claro. Nos 10 piquetes que o haras tem o pasto verde flora no meio do Centro de São José. Sua água também é diferenciada, vinda de poços sem nenhuma contaminação. E claro, com isso os potros do Haras Clemente Moletta sempre dão bons resultados.

Vencendo corridas, Clemente vive uma fase maravilhosa dentro das pistas. Com Dalheconquistadora ele planeja ganhar o Grande Prêmio Osaf (G1) deste ano. Contudo, o que mais está empolgando mesmo são as atuações de seus animais na Península Arábica. Correndo em Omã, Dá-lhe Ghadeer venceu duas corridas em três atuações. A última, na semana passada foi baixando o recorde da distância e demonstrando uma supremacia absurda. O filho de É do Sul e Spade (Wild Event) derrotou 15 animais dos Estados Unidos, Irlanda, França e Inglaterra.

Dá-lhe Ghadeer é o primeiro animal brasileiro a vencer no Brasil, Uruguai e em Omã.

“Somos um haras pequeno, dentro da cidade, na Avenida Rui Barbosa”, comenta Clemente. “E eu, pelo lugar que estou sou admirado por diversas pessoas. Então a gente fica feliz pelo que está acontecendo. Hoje estamos com mais de 500 vitórias, para um haras pequeno é um número muito grande. E agora com estas vitórias em Omã estamos muito felizes. É uma surpresa boa o Dá-lhe Ghadeer ganhar lá de cavalos de outros países. Ele correu lá com 15 cavalos, largou e pegou a ponta. Você vê a carreira e é impressionante a velocidade. Ele ganhou com muita vantagem.”

E o reprodutor É do Sul – hoje alojado em um grande e exclusivo piquete – vem surpreendendo a todos. Sua história chama muito a atenção, no entanto, Clemente credita parte do sucesso de seu garanhão a compatibilidade dele com as matrizes que ele comprou do Haras Santa Maria de Araras. E a história de sua ida para a reprodução é interessante, uma vez que o crioulo do Haras Simpatia foi escolhido no lugar de Dá-lhe Grison para servir no haras.

É do Sul, mesmo com poucas oportunidades já teve filhos vencedores em três países diferentes.

“O É do Sul teve uma hemorragia muito forte e eu resolvi encerrar a campanha, em época semelhante ao Dá-lhe Grison. Teve um veterinário amigo meu que é muito entendido de pedigree, que me perguntou qual dos dois eu iria usar na reprodução. Eu respondi que era o É do Sul. Ele me disse: ‘Acertado, quando descobrirem o que é a filiação do É do Sul você não vai vencer cobrir as éguas’. Ele já havia estudado o pedigree do cavalo e sabia o que era.”

É do Sul é um filho de Irish Fighter em Important Daisy (Ghadeer). Que ainda trás em sua linha materna o sangue de Spend a Buck, pai de sua avó e mais adiante Bold Ruler, que teve grande destaque nos Estados Unidos na década de 70.

“Um garanhão novo que não é aprovado é um risco. O É do Sul eu cobri apenas uma égua na primeira geração, porque eu tinha receio. E de primeira deu a Dá-lhe Requebra (vencedora de duas provas de Listed e colocada em Grupo 1). A Dá-lhe Requebra foi considerada uma das melhores éguas do Brasil na época. Daí em diante a gente começou a dar mais oportunidades a ele.”

Clemente Moletta tem um convívio diário com os animais no haras.

Dá-lhe Grison também tem um lugar especial na parede e na memória de Clemente Moletta. Criado lá, o cavalo venceu o Grande Premio Paraná de 2004, feito enorme para qualquer haras paranaense. E ele tem uma história interessante. Em uma prova corrida em São Paulo, um acidente na raia que culminou na queda de quatro cavalos afetou o boleto do crioulo de Clemente Moletta. Este contratempo praticamente encerrou a campanha do filho de Burooj e Goodbye (Tocatee).

Contudo, o que mais chama a atenção é o amor que Clemente sente pelo que faz. E não é para menos. Qualquer aficionado pelos cavalos que visitar seu haras fica impressionado com o cuidado em tudo, num misto de simplicidade e amor. Do escritória do criador, localizado à cerca de 100 metros da rua movimentada, se abre uma porta que dá direto nas cocheiras dos animais do piquete. Espetacular e surpreendente, deixando os amantes dos cavalos com os “olhos brilhando”.

O potro Dá-lhe Farwell caminha em seu piquete.

Alguns metros dali você consegue enxergar os potros separados, inclusive um lindo alazão irmão inteiro do Dá-lhe Salvador, que foi líder de sua geração em São Paulo, venceu no Uruguai e estreou fazendo segundo em Omã. No piquete que se encontra a excelente matriz Spade, você consegue ver os carros passando na Avenida, algo que realmente impressiona.

Ao lado de uma castanheira, segundo Clemente a única da cidade, um piquete amplo para É do Sul, que passeia em excelente forma mesmo na chuva. E estas castanhas que sua árvore dá são o grande elixir da saúde de Clemente, que após passar um susto no início do ano se encontra muito bem, com uma lucidez impressionante. Dentre suas melhores histórias, uma no Hipódromo de Maroñas, quando Dá-lhe Ghadeer correu no Uruguai.

Vitória de Dá-lhe Ghadeer lembrada na parede do escritório de Clemente Moletta.

“Tenho uma história boa para te contar. Quando o Dá-lhe Ghadeer correu no Uruguai ele era tão favorito que anunciaram no auto-falante: ‘Estão suspensas as apostas no cavalo Dá-lhe Ghadeer’. Suspenderam as apostas. Estava pagando menos de 1,0. Ele correu e ganhou, é esta foto aqui na parede (apontando dentre os diversos quadros). Mas você já havia visto isso alguma vez na vida? Essa é uma história boa para contar (risos).”

O “Seu Clemente” é assim, um abnegado. Não a toa ele foi um dos mais engajados na recuperação do Jockey Club do Paraná, e faz questão de afirmar a importância daquele momento em que o grupo que hoje dirige o clube venceu as eleições. Seu Clemente é “duro na queda” e não mede as palavras para falar da importância desta virada – para melhor – do turfe paranaense.

É do Sul passeia em seu piquete.

“Graças a Deus que nós conseguimos tirar aqueles que estavam acabando com o turfe. Se nós não tivemos tirado essas pessoas, hoje o Jockey estaria fechado. Isso é a mais pura verdade. Essa gente que estava ali estava destruindo tudo. Tivemos sorte de vencer as eleições, ali foi a salvação do Jockey Club do Paraná. E foi uma eleição difícil de ganhar. Olha, e eu falei antes da eleição – porque a gente trabalhou muito nas eleições – que se eles ganhassem eu ia vender tudo, não iria querer mais saber de turfe.”

Paralelo a isso, o criador de cavalos de corrida mais velho do Brasil está em estado de graça. Muito orgulhoso dos feitos de seus animais na pista, como não poderia ser diferente, Clemente agora foca em sua plantação de uvas. De origem italiana, ele tem na produção de vinhos um hobby (inclusive presenteando o repórter com um deles, aprovadíssimo por sinal).

Clemente Moletta, um patrimônio do turfe paranaense e brasileiro.

Ir ao Haras Clemente Moletta é um presente para quem ama os cavalos de corrida. Ver o que este patrono do turfe paranaense vem fazendo desde o fim da década de 50 e, mais que isso,  a paixão pelo turfe que nunca se esvai também é impressionante. Desde o estilo que ele emprega em seu haras, passando pela sua cocheira – uma das melhores – no Tarumã, onde uma plantação de chicória contrasta com sua máquina de moer cenoura, até a aventura de ter animais em Omã, nos inspira a cada dia mais vivenciar o turfe em todos os seus aspectos.

E como pessoa, conhecer o “Seu Clemente” é algo que todos os turfistas deveriam fazer. Em pouco mais de duas horas de conversa qualquer um é capaz de entender porque ele é tão bem quisto no turfe brasileiro, tão querido e tão respeitado. Um patrimônio do turfe paranaense e do turfe brasileiro, que merece todas as homenagens e honrarias possíveis. Sem a menor sombra de dúvida, uma das maiores “Personalidades do Turfe”.

*Fotos: Leopoldo Scremin.